sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013



                                                      
                                                           Uma História para Luíza 
                                                       Maria Alice Lima Ferreira
               


 Luíza pediu-me:
  - Tia, conte-me uma história?
  Seus olhinhos da cor de jabuticabas maduras e no formato de duas  ameixas grandes, um tanto fechadinhos nos cantos, junto às têmporas e cobertos por cílios pretinhos, eram dois pedintes a implorar, na minha direção. Como podia recusar-lhe?
  - Sim. Conto. Mas, só se for uma história verdadeira.
  - Oba! Uma história verdadeira! Que bom tia!
  Dirigimo-nos para a varanda. Sentei-me numa cadeira de recosto curvado,  de ferro, entrelaçado por cordinhas de plástico azul escuro e ela posicionou a dela, idêntica à minha, de frente, um pouco para o meu lado esquerdo. Comecei a narrar:
  - Está vendo aquele morro lá?
  Ela virou-se para vê-lo:
  - Aquele, muito alto, tia?
  - É aquele mesmo. Pois bem, lá mora uma garotinha, que tem seis anos, da sua idade, então. O nome dela é Jolinha. Mas, a Jolinha não vai de carro pra escola não. O pai dela nem tem carro como o seu, que a leva todo dia e depois vai buscá-la, no fim das aulas. Jolinha desce a pé, o morro, com os coleguinhas dela, pra ir à escola e depois volta com eles.
  - E onde é a escola dela?
 - É embaixo, no pé do morro. O pai dela não tem tempo de levá-la à escola e nem a mãe dela. Os dois trabalham muito. Ele sai às 05:00h de casa e a mãe pega logo no batente: lava muita roupa de gente, que mora aqui, entre nós. Depois passa, coloca numas bolsas grandes e vai entregar às pessoas, que lhe pagam para isso. Coitada! Até que gostaria de buscar a filha na escola, mas precisa voltar pra casa rapidamente, pra preparar o jantar, tomar um banho e esperar por ela e o marido. Este só chega de volta do trabalho, depois que a Jolinha já está dormindo, porque trabalha muito longe e tem que pegar três ônibus, pra ir e três pra voltar. Ele é pedreiro, faz casa pra gente rica, mas a casa dele, onde mora a Jolinha, não é igual a sua não. É de tábuas e coberta de zinco, um material da cor do alumínio, mas muito inferior. Só quando a professora manda um bilhete, pedindo a presença dos pais, na escola, é que Dona Zuleika, a mãe da Jolinha deixa o serviço se acumular, se apronta toda, com um vestido de algodão verde, que ganhou de uma de suas patroas, bem justinho ao seu corpo magricela, pega o cabelo comprido e prende-o num coque, no alto da cabeça e desce o morro, para atender à professora, arrastando seus chinelos de couro. Quase sempre há uma reunião, que dizem ser de pais, mas na verdade é de mães, porque só elas conseguem ir. Este é o único dia, que Jolinha volta pra casa acompanhada pela mãe e segue radiante, feliz e orgulhosa da mãe que tem.
  - A Jolinha tem brinquedos, tia?
  - Iguais aos seus não. Mas, tem os que ganha de Papai Noel, todos os anos. Ela tem uma caixa grande, onde guarda todos eles.
  - Ah, então, Papai Noel vai a casa dela?
 - Não. É ela que desce o morro, junto com toda a garotada de lá e, embaixo, entra na fila, ao meio-dia, hora que Papai Noel chega, pra entregar os presentinhos: bolas, petecas, carrinhos, bonequinhas, mas nada tão luxuoso quanto os brinquedos, que você ganha no Natal.
  - Ai , tia, estou ficando com pena da Jolinha. Ela tem o cabelo liso e grande, a pele da cor da minha e os dentes branquinhos? Tem?
   - Tem. Ela se parece muito com você, tem essa boca carnudinha e esse nariz delicado, que nem o seu.
   - Tia, me leva pra conhecer a Jolinha? Por que o pai dela é tão pobre?
  Respirei fundo. A história era verdadeira sim, à medida que se assemelhava à história de tantas crianças pobres. Mas, onde eu ia arranjar uma Jolinha verdadeira, pra minha sobrinha conhecer? Foi, então que tive a idéia:
   - Sabe, Júlia, Jolinha não é um nome verdadeiro. Eu inventei um nome, porque esqueci o dela. Mas, quando eu for levar você lá, perguntaremos o seu nome. O pai dela é pobre, porque não teve a mesma oportunidade que o seu, de cursar uma faculdade de Direito e trabalhar muito bem em sua profissão. Advogado ganha mais que pedreiro, você sabe, porém como o seu João, este é o nome do pai da personagem de nossa história, poderia cursar uma faculdade, se os seus pais eram pobres também e não podiam financiar nenhum curso, que lhe garantisse a matrícula, na faculdade? Naquele tempo, era tudo um pouco mais difícil que hoje: os ricos cursavam a faculdade gratuita, do governo, porque eram bem preparados em cursos pré-vestibulares excelentes e os pobres, se passassem no vestibular, tinham que se contentar com as particulares, caríssimas, que nem todos conseguiam pagar. Foi o caso do seu João. Mas, agora chega de história. Já escureceu. É hora de tomar banho, jantar, ver um pouco de TV e ir dormir, ok?
  - Sim, tia. Mas, quando eu for conhecer a Jolinha, a senhora me ajuda a fazer um embrulho de brinquedos, para  eu levar pra ela?
  - Ajudo sim, mas não vamos levar só pra ela não. Vamos encher o carro de muitos brinquedos e levar para todas as crianças de lá, está bem?

  E assim foi, que, numa tarde de domingo, Luíza e eu subimos o morro, até onde dava pra ir. O resto percorremos a pé e eu pedi ao presidente da Associação de Moradores, que nos ajudasse a subir com os embrulhos. E lá ela descobriu tantas Jolinhas e “Julinhos”, que se encantou em brincar com eles, rolando no chão de terra batida das ruas do morro, feliz, leve e solta, no meio de toda aquela garotada. Crianças se entendem, sejam de que nível social forem, pois elas deixam falar a alma e alma de criança é aquela que já tem lugar garantido no Paraíso. Aliás, no Céu só entram crianças: de dois, três, dez, vinte, quarenta, sessenta, noventa anos. O nº de anos vividos não importa, mas tem  que ser criança, se quiser ganhar o sonhado Paraíso. 

                                                     
                                                   

                                                      Adolescência

                                                                                             Maria Alice Lima Ferreira

  





    Do alto dos meus sessenta e cinco anos, olho para trás e vejo uma menininha franzina, assustada, que encosta um caderno de espiral, que acabara de             comprar,   ao peito, com os olhos, quase saltando das  órbitas.   Que temia ela? A presença do pai, que acabara de perceber, vindo em sua    direção, no meio da rua. Ficou perplexa, paralisada. Ele a alcançou e...
   - Ah, peguei-a! Está na rua! Que colégio é esse, que deixa uma menina sozinha, zanzando na rua? Afinal, deixo-a  lá, para ficar sossegado e elas a deixam sair desacompanhada? – disse ele, segurando-a firmemente pelo punho direito, com a sua mão forte, da qual não conseguia se desprender.
   - Calma,  pai, as irmãs não estão me educando, para o convento não. Estão me educando para o mundo. E eu pensei que o senhor tivesse me colocado num colégio interno, para eu estudar, para me educar...
   - É foi. Mas, também quero ter o sossego de sabê-la bem guardada – respondeu ele, tomado pela surpresa, que as palavras da filha lhe causaram, mas sem afrouxar a mão grande,  a esquerda, que grudara no punho fino da garota.
   - Pai, olhe o escândalo! Todos estão nos olhando. Solte-me, por favor!
   Ele, meio que sem graça, afrouxou os dedos e os escorregou para a mão delicada da menina, segurando-a, mais tranqüilo, então.
   Ela respirou aliviada e prosseguiu:
   - Pai, agora eu vou de volta para o Colégio. Só vim comprar um caderno, pois estava precisando.
   - Mas, eu vou levar você até lá, porque quero ter uma prosa com a sua diretora. Afinal, ela não pode deixar você solta por aí não!
   - Pai, eu já tenho quinze anos. Não sou mais uma criança não. Mas, se o senhor quer ir até lá, vamos!
   E seguiram na direção do morro, que teriam que subir, até alcançarem o Colégio pomposo, com suas janelas de vidro, sua cor azul-celeste, suas telhas francesas, que podiam ser vistas desde o pé do morro, apesar de toda a arborização, que havia ao redor do enorme casarão. À frente, podia-se divisar a escada larga e  grande, que descia desde a porta gigante, de vidro, e terminava , onde começava a trilha, na qual pai e filha caminhavam, naquele momento, subindo em direção ao Colégio. No início da trilha, de cima para baixo, é que ficavam os arbustos de pinheiros e plantas nativas do local. Como  a construção se erguia sobre um patamar bem alto, então as plantas, que ficavam num nível inferior, não lhe cobriam a beleza, que desde a cidade se podia ver.
   O pai ia à frente e a menina atrás. Ele arrastava a perna direita, que numa queda, sofrera uma fratura de fêmur, recentemente, então.
   A garota o observava: era bonito o seu pai. Trajava uma calça num modelo antigo, bege e uma camisa de um azul claro, que realçava a cor azul dos seus olhos, puxados aos antepassados, tais quais os dela. Em tudo se parecia  com ele: na cor dos cabelos dourados, que lhe chegavam encaracolados até a cintura, na cor da pele clara, no temperamento explosivo... Ele tinha os cabelos lisos, curtos, penteados para trás.
   De repente, parou cansado. Sentou-se à beira do barranco e convidou-a a sentar-se também, no que ela prontamente aceitou, postando-se do seu lado direito.
   Sentindo-o mais desarmado, ela arriscou:
   - Pai, se fosse o senhor, não diria nada à irmã não.
   - Por quê?
   - Desculpe, mas acho que ela vai rir do senhor. É que as irmãs nos educam para a vida, não para sermos sepultadas em vida. Elas são muito liberais e confiam na educação que nos dão. Por isso, não impedem a gente de ir à rua, se for necessário.
   Ele ficou mudo. Sem resposta. Levantou-se e continuou a caminhada. Ela atrás.
   - Não vou dizer nada a ela não. Fique tranquila. Só vou levar você até lá.
  - Pai...
  - Que é? – perguntou, olhando para trás.
  - Tenho medo de o senhor morrer.
  - Por quê?
 - Porque não vou saber viver sozinha. Já reparou que é o senhor e só o senhor, quem escolhe minhas roupas, meus calçados... Bom gosto o senhor tem, mas...
   - Mas, o quê?
   - Eu queria aprender a ter bom gosto também. O senhor não podia deixar que eu mesma escolhesse e comprasse minhas roupas, meus calçados?
  - É você tem razão... A próxima compra você pode fazer.
 - Oba! Mas, tem mais: queria que o senhor confiasse mais na educação que me dá. Se confiar, não trairei sua confiança.
  - Como assim? O que quer mais?
  - Quero que o senhor estique mais o tempo, que me deixa ficar com meus amigos, na pracinha. A hora, que tenho que voltar para casa, é a hora, que muita gente está saindo de casa, não acha não? 09:00 h é muito cedo!
   - Tá. De agora em diante, poderá ficar até 09:30 h.
   - Ela achou pouco, mas sentiu-se vitoriosa em sua investida.
  - Obrigada. Mas, tem mais...
  - Mais o quê?
 - Queria que o senhor não marcasse mais o meu lugar no ônibus não. O senhor só me põe sentada perto de velho. Sabe aquele dia, que o senhor me deixou pegar o ônibus sozinha,  porque estava doente? Então... Sentei perto de um jovem da minha idade e foi bem melhor do que , quando viajei, pela última vez, perto de um velho. O senhor pensa que a honestidade, o respeito e a bondade só existem em cabelos brancos? Que nada! Aquele velho sem-vergonha começou a passar as mãos em minhas pernas, assim que o ônibus deu partida. Aí...
  - Me mostre que velho é esse e eu... – dizia, com os olhos crepitando de ódio.
  - Calma,  paizinho! Eu me levantei e viajei até aqui, de pé. Não havia mais cadeiras desocupadas... Já aquele jovem, que eu sentei perto dele, me respeitou,  conversamos assuntos saudáveis e eu o achei até muito simpático. Veja bem: nem todo homem que tem cabelos brancos é confiável.
   - Estou vendo que não conhecia minha filha. – disse ele atrasando o passo e esperando por ela, com os braços abertos.
    Ela correu para ele, enroscando-se naquele abraço. Ele a beijou na testa, suavemente. Começava ali uma nova etapa no caminho da menina. Pouco a pouco, ela foi conquistando toda a liberdade, que uma mulher podia conseguir, naquela época.
   - Filha...
  - Que é?
  - Pode também escolher o seu lugar no ônibus, sim?
  -  Oba! Obrigada! – disse ela, abraçando-o e beijando-o na face.
 A vida seguiu seu rumo. A menina já não tem o pai nem a mãe. Nem é mais uma menina. Tem agora a mesma idade, que o seu pai tinha, naquele dia. Olha para trás e pensa: É, valeu aquele papo...

  




                                                                      AVAREZA:

 Conheci um homem, rico fazendeiro, que era a imagem personificada da avareza. Se ia receber visitas, corria ao mercado e comprava um pacote de macarrão. Mas, se, por acaso, a visita não comparecesse, no dia combinado, ele devolvia ao mercado o pacote de macarrão comprado. Tinha muitos filhos, mas quando comprou uma caminhonete Pick-up, não deixou que nenhum deles aprendesse a dirigir, que era pra não gastarem gasolina. Mal terminavam a Escola Primária, os meninos pegavam na enxada, pra economizarem, não pagando lavradores de fora.. Assim fariam crescer o “bolo”. Acho até que "ele não deve ter servido o Exército, que era para não bater continência, o que lhe obrigaria a abrir a mão."
  Certa vez, encontrei esse homem, na farmácia, amparado por um filho. Tive pena dele. Perguntei-lhe se estava doente e ele me respondeu, com os olhos cheios de lágrimas, que estava com câncer, tinha dificuldade de locomoção, sentia muita dor, não conseguia mais dirigir a sua caminhonete Pick-up e, como não deixara nenhum filho aprender a dirigi-la e não havia nenhum motorista pras bandas de sua fazenda, era obrigado a caminhar a pé, até à farmácia,  já que não se aguentava em cima de um cavalo. Para tomar as injeções medicadas, na farmácia da cidade, caminhava a pé desde a sua fazenda, contando sempre com apoio de um dos filhos. Não sei como ele não pensou  na possibilidade de viajar numa charrete. Não me ocorreu indagar-lhe isso, mas, com  certeza, ele não dispunha de uma e já nessa altura da vida não cogitava adquirir mais nada.
   Eu era cidadã daquele município, mas trabalhava numa outra cidade, Aparecia, por ali, em alguns feriados e durante as minhas férias, de sorte, que a última notícia que tive daquele homem, foi a de que havia falecido. O exemplo de avareza, que ele me deixou,  acho que me fez perdulária. Nunca consegui juntar dinheiro.
  Hoje eu encaro a avareza como o assombroso pecado do Capitalismo. O nome já diz: pecado capital. Tenho horror à avareza e vejo, pra meu desgosto, que  grandes grupos privados e públicos, no Brasil e no mundo, só querem fazer crescer  o seu “bolo”, em detrimento de uma classe trabalhadora, cuja força de trabalho é sempre vendida, para eles, a preço de banana.
  Não sei quando a avareza entrou no mundo, mas sei, que ela causa muitos danos a muitos, enquanto beneficia uma minoria exploradora.
  Entendo também, que precisamos nos libertar deste maldito pecado capital, se quisermos fazer de nosso Planeta Terra um lugar possível de se viver como irmãos que somos. Fora AVAREZA!
                                                                                               Maria Alice Lima Ferreira